segunda-feira, 8 de outubro de 2012

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O 'sonho americano' se tornou um mito, afirma economista Prêmio Nobel
 
O setor financeiro é responsável pela crescente desigualdade entre ricos e pobres nos Estados Unidos, diz o professor de economia ganhador do Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz. Em uma entrevista para a “Spiegel”, ele acusa o setor de rapinar os pobres e comprar políticas do governo que o ajuda a ficar mais rico. Na Universidade de Colúmbia, que fica localizada a apenas quadras do Harlem, no oeste de Manhattan, riqueza e pobreza estão mais próximas do que em muitos lugares em Nova York. Aqui é onde o economista americano e ganhador do Prêmio Nobel de 2001, Joseph Stiglitz, trabalha como professor.
Natural de Gary, Indiana, ele passou anos examinando a desigualdade social. Sua primeira experiência pessoal com a questão ocorreu na infância, quando perguntou por qual motivo sua babá não estava cuidando de seus próprios filhos. Posteriormente, como economista-chefe do Banco Mundial, ele estudou o fenômeno em um nível global. Em junho, ele publicou um livro sobre o assunto, intitulado “The Price of Inequality: How Today's Divided Society Endangers Our Future” (O preço da desigualdade: como a sociedade dividida de hoje coloca nosso futuro em risco, em tradução livre), que foi lançado recentemente em alemão. Em uma entrevista para a “Spiegel”, Stiglitz discute como a disparidade de renda está dividindo os Estados Unidos e como a Europa poderia superar a crise do euro.

Spiegel: Professor Stiglitz, como o senhor espera que o próximo presidente dos Estados Unidos trate do problema da distribuição desigual de riqueza?
Stiglitz: Primeiro, ele precisa reconhecer que há um problema. Observar o crescimento da desigualdade é como observar o crescimento da grama. Você não a vê crescendo no cotidano, mas após um período de tempo, o crescimento se torna visível.
 
O movimento "Occupy Wall Street", que teve origem com a crise econômica e que se espalhou por todo o mundo, completa um ano; na foto, estudante pinta o corpo para participar de protesto em em Nova York, nos EUA Spencer Platt/Getty Images/AFP

Spiegel: Qual é a escala dessa desigualdade?

Stiglitz: Nas últimas décadas, a disparidade de renda e riqueza cresceu dramaticamente neste país (os Estados Unidos). Permita-me dar um exemplo: em 2011, os seis herdeiros do império Walmart tinham uma riqueza de quase US$ 70 bilhões, que equivale à riqueza somada dos 30% de renda mais baixa da sociedade americana.

Spiegel: Os Estados Unidos sempre se viram como sendo uma terra de oportunidade, onde as pessoas podem sair da miséria para a riqueza. O que aconteceu ao sonho americano?

Stiglitz: Essa crença ainda é poderosa, mas o sonho americano se tornou um mito. As chances na vida de um cidadão americano jovem dependem mais da renda e da educação de seus pais do que em qualquer outro país industrializado avançado para o qual existem dados. A crença no sonho americano é reforçada por casos, por exemplos dramáticos de indivíduos que ascenderam do fundo ao topo –mas o que mais importa são as chances na vida do indivíduo. A crença no sonho americano não é apoiada por dados.

Spiegel: O que os números sugerem?

Stiglitz: Não houve nenhuma melhoria no bem-estar da família típica americana por 20 anos. Por outro lado, o 1% no topo da pirâmide da população ganha 40% mais em uma semana do que o quinto mais baixo recebe em todo um ano. Resumindo, nós nos transformamos em uma sociedade dividida. A América criou uma máquina econômica maravilhosa, mas a maioria dos benefícios vai para o topo.

Spiegel: Entretanto, restando mais cinco semanas de campanha presidencial, a desigualdade ainda não teve um papel sério.

Stiglitz: Ela é um assunto, mas geralmente apenas sob a superfície. Não se pode esperar um debate científico sobre o coeficiente Gini, a medição estatística de desigualdade. Mas quando os democratas dizem que apoiam a classe média, eles estão falando sobre a desigualdade. E eles acentuam o contraste com o candidato republicano, Mitt Romney, que é emblemático do 1% superior da população. O fato de Romney ter denegrido os 47% dos americanos que não pagam imposto de renda provocou uma reação enorme, em parte porque mostrou quão fora de contato as pessoas no topo estão do restante do país.

Spiegel: O slogan político do movimento Ocupe é “Nós somos os 99%”. Mas quem exatamente representa o 1%?

Stiglitz: É o grupo de pessoas que fica com 20% a 25% da renda. A fatia delas dobrou nos últimos 30 anos. Elas são donas de aproximadamente 35% da riqueza ou mais. Elas têm as melhores casas, a melhor educação e os melhores estilos de vida.

Spiegel: Mas os ricos não dão algo em troca? Na Alemanha, o 1% superior contribui com quase um quarto da receita tributária, e os 10% superiores com mais da metade dos impostos. Essa não é uma divisão apropriada?

Stiglitz: Eu desconheço os números alemães. O que posso dizer é que o 1% no topo nos Estados Unidos tem uma taxa média de impostos de menos de 30% de sua renda declarada, e a grande parcela que tira grande parte de sua renda dos ganhos de capital paga ainda menos. E nós sabemos que eles não declaram toda sua renda.

Spiegel: Nós achávamos que, de modo geral, os americanos não invejavam a riqueza dos ricos.

Stiglitz: Não há nada errado se alguém que inventou o transistor ou realizou algum avanço técnico que é benéfico para todos receba uma grande renda. A pessoa merece o dinheiro. Mas muitos no setor financeiro enriqueceram por meio de manipulação econômica, por práticas enganosas e anticompetitivas, por empréstimos predatórios. Eles tiraram proveito dos pobres e desinformados, enquanto ganhavam quantidades imensas de dinheiro explorando esses grupos com empréstimos predatórios. Eles lhes vendiam hipotecas caras e escondiam os detalhes sobre as taxas nas letras miúdas.

Spiegel: Por que o governo não impediu esse comportamento?

Stiglitz: O motivo é óbvio: a elite financeira apoia as campanhas políticas com contribuições imensas. Ela compra as regras que lhe permite ganhar o dinheiro. Grande parte da desigualdade existente hoje é consequência das políticas do governo.

Spiegel: O senhor pode nos dar um exemplo?

Stiglitz: Em 2008, o presidente George W. Bush alegou que não tínhamos dinheiro suficiente para fornecer cobertura de saúde para as crianças pobres americanas, que custava alguns poucos bilhões de dólares por ano. Mas repentinamente tínhamos US$ 150 bilhões para resgatar a seguradora AIG. Isso mostra que há algo errado em nosso sistema político. Está mais próximo de “um dólar, um voto”, do que “uma pessoa, um voto”.

Spiegel: Com 99% contra 1%, soa como se fosse a condição perfeita para uma revolução. Por que as coisas ainda estão tão calmas nos Estados Unidos?

Stiglitz: Os Estados Unidos não têm muito espírito revolucionário. Minha verdadeira preocupação é que as pessoas fiquem alienadas da política. Na última eleição, nós tivemos um comparecimento do eleitor para votar de cerca de 20% entre os jovens. Essas são as pessoas cujo futuro está mais em risco, e 80% delas acham que não vale a pena votar, porque o sistema é manipulado e no final os bancos vão dirigir o país de qualquer forma.

Spiegel: O movimento Ocupe não conseguiu se tornar um fator poderoso. Por que ele fracassou?

Stiglitz: Ele se transformou em um movimento antiestablishment, e um aspecto de ser antiestablishment é ser antiorganização. Não é possível ter um movimento que não seja organizado. De qualquer modo, a frustração ainda está lá. Eu vou contar uma história: eu assisti recentemente “A Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht. Quando chegou a frase “O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”, a plateia inteira começou a aplaudir.

Spiegel: Quatro anos atrás, nós citamos essa frase em uma capa da “Spiegel”, sobre a crise bancária.

Stiglitz: É mesmo? Não era uma plateia demagoga naquela noite no teatro, mas para mim disse algo sobre até que ponto isso penetrou na psique dos americanos.

Spiegel: O que há na mente deles?

Stiglitz: As pessoas temem perder seu emprego. Mesmo as que estão empregadas, elas não sabem se o manterão. O que é certo é que se perderem o emprego, será difícil conseguir outro. Todo mundo conhece alguém que não consegue encontrar um emprego...

Spiegel: ...ou que perdeu sua casa.

Stiglitz: Essa é outra fonte de ansiedade. Mais de um quarto de todos os proprietários de imóveis residenciais deve mais do que o valor de suas casas. Nós precisamos de uma estratégia de crescimento para estimular a economia. Nós não investimos o suficiente por 30 anos –em infraestrutura, tecnologia, educação.

Spiegel: Com um fardo da dívida de US$ 16 trilhões, não há muito espaço para manobra.

Stiglitz: Os Estados Unidos podem tomar empréstimos com taxa de juro próxima de 0%, de modo que seríamos estúpidos se não investíssemos mais dinheiro e criar empregos. E também poderíamos fazer esforços para assegurar que os super-ricos paguem sua parcela justa. Nós poderíamos levantar mais dinheiro de uma série de formas. Olha para as empresas de mineração: o governo lhes concede o direito de extrair recursos por muito menos do que deveria, mas leilões poderiam assegurar que paguem o apropriado.

Spiegel: Então, sua resposta para o problema da desigualdade é transferir dinheiro do topo para a base?

Stiglitz: Primeiro, transferir dinheiro do topo para a base é apenas uma sugestão. Mais importante é ajudar a economia a crescer de modo que beneficie tanto as pessoas na base quanto no topo, e o fim dos “privilégios”, que transferem muito dinheiro dos cidadãos comuns para aqueles no topo.

Spiegel: A redistribuição também é a estratégia quando se trata da Europa e da crise do euro –a transferência de dinheiro do norte para o sul?

Stiglitz: O principal problema na Europa no momento são os pacotes de austeridade, que deprimem a demanda e enfraquecem o crescimento econômico. A reversão dessa política é absolutamente essencial para desenvolver crescimento e uma maior igualdade. A Espanha, por exemplo, fica cada vez mais fraca, o dinheiro sai do país, e é um ciclo vicioso.

Spiegel: O verdadeiro problema não é a falta de competitividade? A Espanha e os outros países na crise gastavam além de seus meios, esse é o motivo para estarem em apuros.

Stiglitz: Não, a crise da Europa não é causada por dívidas de longo prazo e deficits excessivos. Ela é causada pelos cortes de gastos do governo. A recessão causou os deficits, não o contrário. Antes da crise, a Espanha e a Irlanda apresentavam superavits orçamentários. Elas não podem ser acusadas de esbanjamento fiscal. Mas disciplina fiscal apenas piorará a recessão. Nenhuma economia se recuperou de uma recessão por meio de austeridade.

Spiegel: É mesmo? E quanto a Estônia ou a Letônia? Com reduções salariais severas, os Estados bálticos aumentaram a produtividade e se recuperaram.

Stiglitz: Elas são economias pequenas. Elas podem compensar a perda de gastos do governo com mais exportações. Mas isso não funciona com uma taxa cambial fixa e quando seus parceiros comerciais não estão bem. Os países em crise não sofrem de gastos excessivos. O problema não é oferta, mas sim demanda. É responsabilidade da política monetária e fiscal manter a economia em pleno emprego.

Spiegel: Independente do custo? Nenhum lar consegue viver permanentemente gastando mais do que ganha. Por que os governos não devem se enquadrar nessa regra?

Stiglitz: Porque os países são diferentes dos lares. Se um cidadão reduz seus gastos, não há nenhuma consequência para o país. O desemprego não aumenta. Mas se o governo corta gastos, isso tem um grande efeito. Uma expansão dos gastos pode aumentar a produção ao criar empregos, que serão preenchidos por pessoas que, caso contrário, estariam desempregadas.

Spiegel: O senhor presume que o governo sabe melhor onde criar empregos. O senhor não está superestimando essa habilidade?

Stiglitz: Nós precisamos de estradas, pontes e aeroportos. Isso é óbvio. Os retornos do investimento público em tecnologia são, na média, muito altos –pense na Internet, no Projeto Genoma Humano e no telégrafo.

Spiegel: Também há muitos exemplos de dinheiro público desperdiçado. O programa espacial americano custa uma fortuna, e os resultados são questionáveis.

Stiglitz: Mas mesmo esses gastos ainda são menores do que o dinheiro desperdiçado pelo setor financeiro privado dos Estados Unidos, e os bilhões gastos para resgatar as empresas do setor financeiro. Apenas uma corporação, a AIG, recebeu mais de US$ 150 bilhões –mais do que foi gasto em bem-estar social para as famílias necessitadas de 1990 a 2006.

Spiegel: Mas o governo também se tornou proprietário dessas empresas e até mesmo conseguiu vender partes delas com lucro. O senhor não teme que essa estratégia de pacotes de estímulo cada vez maiores possa levar a inflação?

Stiglitz: Não necessariamente. O banco central tem a capacidade de tirar liquidez do sistema.

Spiegel: Mas é muito mais difícil diminuir a liquidez do que aumentá-la.

Stiglitz: Um banco central bem administrado conta com muitas ferramentas. Ele pode aumentar os juros ou as exigências de depósito compulsório para os bancos privados. Logo, acho que o risco é relativamente pequeno. A fraqueza na economia europeia apresenta um risco muito maior do que qualquer risco de inflação moderada. É melhor algum emprego onde o salário perde em termos reais em poucos pontos percentuais do que nenhum emprego.

Spiegel: Para o senhor, quais são as perspectivas de futuro da Europa?

Stiglitz: A Europa está enfrentando um ponto crítico. As alternativas são “mais Europa” ou “nenhuma Europa”. A configuração de meio-termo é instável.

Spiegel: Qual seria a melhor opção para a Alemanha?

Stiglitz: Ambas as estratégias custarão dinheiro para a Alemanha, mas a opção “mais Europa” custará menos. A Europa precisa de um sistema bancário comum e de uma estrutura financeira comum. Se a Europa tomar empréstimos como um todo, ela poderia ter melhor acesso ao crédito do que os Estados Unidos. Logo, “mais Europa” não é apenas melhor para a Espanha ou para a Itália, mas também para a Alemanha.

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